Cospe nele
O dia em que Chico Buarque virou Geni
Perplexos com apoio do compositor a Genoino, entre refletir e linchar, leitores escolhem o caminho fácil das pedras. Noves fora, Juca Kfouri e Beth Carvalho assinaram; adesões passam de 7 mil
por João Peres, da RBA
publicado
19/09/2013 10:24,
última modificação
19/09/2013 10:41
Giuseppe Bizzarri/Folhapress
Raras vezes se vê uma notícia perdida neste mundo de sobreinformação causar tamanha perplexidade. A informação da RBA de que o compositor e escritor Chico Buarque aderiu ao abaixo-assinado em defesa do deputado José Genoino, réu da Ação Penal
470, o mensalão, expôs na internet uma enxurrada de sentimentos que
falam muito sobre como os brasileiros enxergamos os políticos e
desconfiamos do funcionamento das instituições democráticas – por
consequência, da democracia em si.
Entre os quase 300 comentários feitos até ontem apenas em torno da reportagem da RBA,
desconsiderando manifestações publicadas em outras páginas, xingamentos
dominam, seguidos por elogios à atitude do cantor. Nas manifestações
negativas reside o objeto digno de análise. Seria de se imaginar que a
postura de Chico Buarque levasse a uma reflexão simples, banal: se ele
está apoiando Genoino, não seria bom que eu tentasse entender o porquê?
O propósito da lista organizada por amigos do deputado não é outro
que não esse: o de mostrar que, pelo respaldo social de que goza frente
às acusações que recebe, o ex-presidente do PT talvez devesse ter
recebido do Supremo Tribunal Federal
(STF) outro tratamento. Sendo tarde para reverter a condenação, ao
menos no todo, trata-se de um desagravo, na visão destes apoiadores, a
alguém que recebeu uma pena injusta e que precisa ter sua honra
resgatada.
Entre a reflexão e o linchamento, toma-se o caminho fácil das pedras nas mãos.
Os comentários começam com perplexidade: “Isso não é possível.. Um cara com o intelecto do Chico não faria uma bobagem dessa...”
Transformam o compositor em vítima da desinformação: “Ô Chico, até tu
entrou nessa. Espero que sua fama de "pé frio" se confirme. Fala
sério!”
Partem para a difamação: “Pilantra. O pai fundou o PT, a irmã tinha
cargo... entre outras coisas. A falsa esquerda que se deu bem na
ditadura.”
Chegam ao melhor “eu já sabia” de que se tem notícia: “Lógico! Ele
foi um dos apoiadores dessa corja. Gostava muito do Chico. Hoje não
gosto mais.”
Vão à explicação sociológica: “O cara é talentoso, mas com certeza o sangue burguês fala mais alto nessas horas. Nenhuma decepção!”
E apelam à antropologia e à biologia: “Ótimo compositor, mas péssimo
ser humano. Eu já conhecia esta faceta quando mostrou-se contra a
ditadura na época. Nos livramos da ditadura e ganhamos José Dirceu,
Dilma, Lula, Delubio, José Genoino, etc.... Ou seja, trocamos 6 por 15
dúzias”.
Ao observar o comportamento exposto em redes sociais, sempre é bom
manter um pé atrás, mas, neste caso, conversas à mesa do bar, no almoço
de domingo e nos ônibus da vida estão aí para mostrar que os comentários
colocados neste microcosmo não estão isolados neste mundo. Não é de
hoje que se debate sobre a tendência de generalizar a política – ou
melhor, os políticos, sempre entendidos como aproveitadores
profissionais, incapazes de ter contato com a realidade e insensíveis.
Embora a visão não seja desprovida de fundamentos, a extrapolação desta
visão é que é um problema, com impacto direto em nossa vida democrática.
Não é de se surpreender com o linchamento porque os comentários sobre
a posição do compositor nada mais fazem que reproduzir o senso comum
acumulado ao longo de décadas, e contemporaneamente tornados públicos de
forma instantânea pela internet. É mais fácil andar com a manada do que
parar para pensar.
O que Chico fez foi emprestar seu prestígio para promover um
convite a seus admiradores: vamos refletir se a chamada “opinião
pública” está sendo justa com o deputado? A lista pró-Genoino tem apoios
como os do escritor Fernando Morais, do cineasta Toni Venturi, da
psicanalista Maria Rita Kehl. Muito à esquerda? Citemos Nelson Jobim,
ex-ministro do STF e dos governos FHC e Lula.
A propósito, a carta intitulada "Nós estamos aqui" ultrapassa a casa
da 7 mil assinaturas, entre elas as do jornalista Juca Kfouri e da
cantora Beth Carvalho.
São chamamentos à reflexão. Não é preciso concordar com os
apoiadores do deputado petista, mas não é construtivo, pessoal e
socialmente, rasgar o convite sem lê-lo. Dá trabalho, é verdade, formar
uma opinião sólida e consistente, e às vezes é preciso perder amizades
para defendê-la – Chico que o diga. Mas é melhor para a democracia do
que o senso comum. A ojeriza pela vida política, senso comum, é o que
facilita o sequestro da mesma por poucos grupos econômicos que conseguem
ditar as ordens no país e no mundo.
Isso leva a uma questão maior, que é a vulnerabilidade de nossa
democracia. Uma população que acredita piamente em uma história, sem
contestá-la, é uma população fácil de dominar. Assim como o admirador de
Chico não deve confiar de olhos fechados no que ele está a dizer,
tampouco deve ter como verdade inconteste aquilo que é divulgado por uma
emissora que apoiou um golpe e uma ditadura, que manipulou uma eleição
presidencial e que de lá para cá desestabilizou outras tantas, sem
entrar na seara econômica, nas manifestações de junho e nos direitos
sociais.
Chico paga o preço de ser bem resolvido: ele é feito pra
apanhar, ele é bom de cuspir, mas não dá seu prestígio pra qualquer um,
maldito Chico. Frente à perplexidade, é mais fácil culpar o outro do que
tentar entender se estamos errando ou não. O que preocupa não é essa
nossa Geni, calejada pela vida, rica e de reputação – e que não vai
morrer por um linchamento de redes sociais. Preocupa saber que todos os
dias milhares de Genis sofrem com essa linha de intolerância ao outro,
tão natural na sociedade brasileira: ateus, prostitutas, presidiários,
gays etc. O caminho em que as pedras ficam no chão é árduo. Mas é melhor
para todo mundo.