“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil“, deveras sentenciou Joaquim Nabuco. Mas na versão global, ironicamente “inteligente”, ele diz: “O Brasil já é um país mestiço! E não vamos tolerar preconceito!”.
Por Douglas Belchior
Nas últimas semanas escrevi dois textos sobre a relação entre meios de comunicação, publicidade e humor e a prática de racismo, o primeiro provocado por uma peça publicitária de divulgação do vestibular da PUC-PR e o segundo por conta de um programa de humor que ridicularizava as religiões de matriz africana. Hoje, graças a Rede Globo de televisão, retorno ao tema.
Neste domingo 3 de novembro o programa
Fantástico, em seu quadro humorístico “O Baú do Baú do Fantástico”,
exibiu um episódio cujo tema é muito caro para a história da população
negra no Brasil.
Passado mais da metade do programa, eis
que de repente surge a simpática Renata Vasconcellos. Sorriso
estonteante ainda embriagado pela repentina promoção: “Vamos
voltar no tempo agora, mas voltar muito: 13 de maio de 1888, no dia em
que a Princesa Isabel aboliu a escravidão. Adivinha quem tava lá? Ele, o
repórter da história, Bruno Mazzeo!”
O quadro, assinado por Bruno Mazzeo, Elisa Palatnik e Rosana Ferrão,
faz uma sátira do momento histórico da abolição da escravidão no Brasil.
Na “brincadeira” o repórter entrevista Joaquim Nabuco, importante
abolicionista, apresentado como líder do movimento “NMS – Negros, mulatos e simpatizantes”!
Princesa Isabel também entrevistada, diz que os ex-escravos serão amparados pelo governo com programas como o “Bolsa Família Afrodescendente”, o “Bolsa Escola – o Senzalão da Educação” e com Palhoças Populares do programa “Minha Palhoça, minha vida”!
“Mas por
enquanto a hora é de comemorar! Por isso eles (os ex-escravos) fazem
festa e prometem dançar e cantar a noite inteira…” registra o repórter,
quando o microfone é tomado por um homem negro que, festejando, passa a gritar: “É carnaval! É carnaval!”
O contexto
Não acredito que qualquer conteúdo seja
veiculado por um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo
apenas por um acaso ou sem alguma intencionalidade para além da nobre
missão de “informar” os milhões de telespectadores, ora com seus corpos e
cérebros entregues aos prazeres educativos da TV brasileira em suas
últimas horas de descanso antes da segunda feira – “dia de branco”.
E me perguntei: Por que – cargas
d’água, a Rede Globo exibiria um conteúdo tão politicamente
questionável? O que teria a ganhar com isso? Sequer estamos em maio! Que
“gancho” ou motivação conjuntural haveria para justificar esse
conteúdo?
Bom, estamos em novembro. Este é o mês reconhecido oficialmente como de celebração da Consciência Negra.
É o mês em que a população a f r o d e s c e n d e n t e rememora, no
dia 20, Zumbi dos Palmares, líder do mais famoso quilombo e personagem
que figura no Livro de Aço como um dos Heróis Nacionais, no Panteão da
Pátria. Relevante não?
Estamos também na véspera da III
Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que começa nesta
terça, dia 5 e segue até dia 7 de Novembro, em Brasília, momento ímpar
de reflexão e debates sobre os rumos das ações governamentais
relacionadas a busca de uma igualdade entre brancos e negros que jamais
existiu no Brasil. Isso somado à conjuntura de denúncia de violência e assassinatos que tem como principais vítimas os jovens negros, essa Conferência se torna ainda mais importante.
Voltando ao Fantástico, evidente que há
quem leia as cenas apenas como um mero quadro humorístico e como
exagero de “nossa” parte. Mas daí surge novas perguntas:
Um regime de escravidão que durou 388 anos; Que custou o sequestro e o
assassinato de aproximadamente 7 milhões de seres humanos africanos e
outros tantos milhões de seus descendentes; e que fora amplamente
denunciado como um dos maiores crimes de lesa-humanidade já vistos,
deve/pode ser motivo de piadas?
Quantas cenas de “humor inteligente”
relacionado ao holocausto; Ou às vítimas de Hiroshima e Nagasaki; Ou às
vítimas do Word Trade Center ou – para ficar no Brasil – às vítimas do
incêndio na Boate Kiss, assistiremos em nossas noites de domingo?
Ah, mas ex-escravizados festejando em carnaval a “liberdade”
concebida pela áurea princesa boazinha, isso pode! E ainda com status de
humor crítico e inteligente.
Minha professora Conceição Oliveira diria: “Racismo meu filho. Racismo!”.
A democratização dos meios de comunicação como forma de combate ao racismo
Uma das tarefas fundamentais dos meios
de comunicação dirigidos pelas oligarquias e elites brasileiras tem sido
a propagação direta e indireta – muitas vezes subliminar, do racismo. É
preciso perceber o que está por trás da permanente degradação da imagem
da população negra nesses espaços. Há um pensamento racista que é, ao
mesmo tempo, reformulado, naturalizado e divulgado para a coletividade.
A arte em forma de publicidade,
teledramaturgia, cinema e programas humorísticos são poderosos
instrumentos de formação da mentalidade. O que vemos no Brasil,
infelizmente, é esse poder a serviço do fomento a valores racistas e
preconceituosos que, por sua vez, gera muita violência. A democratização
dos meios de comunicação é fundamental para combater essa realidade. No
mais, deixo duas perguntas ao governo federal e ao congresso nacional,
dos quais devemos cobrar:
O uso de concessão pública para fins de
depreciação, desvalorização da população negra e da prática do racismo,
machismo, sexismo, homofobia e todos os tipos de discriminação e
violência não são suficientes para colocar em risco a concessão destes
veículos?
Por que Venezuela, Bolívia e Argentina,
vizinhos latino-americanos, avançam no sentido de diminuir a
concentração de poder de certos grupos de comunicação e no Brasil os
privilégios para este setor só aumentam?
Tantas perguntas…
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