sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Itamar Assumpção e os negos ditos das metrópoles.

Músico vanguardista, ele levou a umbigada e a música caipira ao undigrudi paulistano. Desvelou a poesia concreta das esquinas – e o chão encharcado de sangue negro das cidades. Rebelde, nunca capitulou às leis do mercado e estereótipos


Uma proposta de escuta


A música pode afetar partes distintas de nosso cérebro como nenhuma outra manifestação artística. Através dela mobilizamos afetos, memórias, revivemos sentimentos bons e ruins. As músicas que nos rodeiam nos dizem muito sobre quem somos, o mundo em que vivemos e nosso meio social, mas nem sempre temos controle sobre o que escutamos e sobre nossas preferências auditivas, um mercado escolhe e escuta por nós. Portanto, ter uma escuta ativa é uma forma de afirmar nossa humanidade num mundo de objetificação em que somos apenas números.

No que se refere à obra de Itamar Assumpção, músico ligado à movimentação cultural que ficou conhecida como Vanguarda Paulista, não há nada que eu possa dizer que não seja melhor compreendido pela escuta atenta de suas músicas. Por isso, antes de ler, ouça.

Nesse momento em que vivemos relações extremamente mediadas, atravessadas por interferências, ruído branco, picotamentos e diálogos em áudio acelerado em 2x, a obra de Itamar Assumpção exige presença, nada mais que isso.
Track 01: Nego Dito

Se chamar a polícia eu viro uma
onça, eu quero matar
a boca espuma de ódio.
Eu vou cortar tua cara, vou
retalhá-la com navalha!

As frases acima caberiam na boca de qualquer pessoa negra do Brasil. Da minha já espumaram algumas vezes, confesso.

Mas faça você, prezadíssima leitora, o exercício de imaginar essas palavras ditas especificamente por um homem de um metro e noventa, negro, retinto, com uma feição séria, desafiadora e com olhos fixos na câmera ou no espectador. Esse homem é Nego Dito, apelido do perigoso marginal Benedito João dos Santos Silva Beleléu, a mais famosa criação de Itamar Assumpção, que, por meio dessa máscara-personagem, consegue dizer o que qualquer pessoa prudente jamais diria fora do espaço protegido pela suspensão da lógica social permitida pela performance e pela teatralidade.

Essas palavras podem ser lidas como um ensejo de resposta à violência estatal, simbólica e real, que por séculos vem sendo o pano de fundo da imagem de um Brasil pacífico e acolhedor, construída sobre o chão encharcado de sangue negro. A sanha de Beleléu é sintoma nacional e corre solta em São Paulo à midnight ou ao meio-dia.

Sintetizar a raiva, a dor, a revolta, a injustiça, o medo do futuro, a beleza extrema e a simplicidade absoluta eram habilidades que Itamar Assumpção tinha de sobra, num fazer de músico-ourives, cirúrgico, em que cada detalhe do arranjo, da letra, cada entoação da voz, cada trejeito no palco tinha significado. Nada era em vão.

Beleléu leléu eu, disco no qual Nego Dito pela primeira vez se manifesta, é um dos álbuns mais icônicos da música brasileira. Conceitual, a obra carrega quase todos os elementos que o músico aprofundaria ao longo de sua carreira: a teatralidade, a poética, o ritmo, as camadas de significado, a importância da oralidade, da palavra, o papel do contrabaixo e dos movimentos cíclicos. Um inegável trabalho de cientista musical, de um douto que desenvolveu metodologia própria e única.

Poderíamos ainda acrescentar ao rol das múltiplas capacidades artísticas de Itamar Assumpção a alcunha de poeta, mas isso ele – ironicamente – não era. “Grande Poeta-não” foi o apelido que carinhosamente recebeu e que resume um pouco de sua complexidade. Traquinas, positivando o NÃO – que ouviu diversas vezes em sua trajetória de músico independente – ao mesmo tempo que negativava o SIM. No país da escravatura, quem sempre concorda, perece.

“Entre o sim e o não, existe um vão.”
Track 02: Bom crioulo

Itamar Assumpção tinha uma relação complexa com o mercado de discos. Ao mesmo tempo que queria se fazer ouvido, televisionado e transmitido radiofonicamente, queria manter a propriedade sobre sua obra e era pouco afeito a concessões estéticas que o desrespeitassem como artista. No documentário Daquele instante em diante (2011), dirigido por Rogério Velloso, Arrigo Barnabé – companheiro de caminhada de Itamar – conta que, ao apresentar seu trabalho nas gravadoras, Itamar quase sempre tinha sua obra ignorada e era encorajado a gravar discos “de preto”: pontos de umbanda ou samba. De fato, ele gravou pontos e sambas, mas totalmente à revelia do que era esperado.

Em 20 de novembro de 1995 vinha a público o álbum Ataulfo Alves por Itamar Assumpção: pra sempre agora, fruto de um estudo intenso da obra do sambista mineiro. Nenhuma faixa nesse disco é de autoria de Itamar Assumpção, mas absolutamente todas têm sua marca indelével. Redesenhando arranjos, desconstruindo significados e fazendo inserções e comentários nas letras, o disco apresenta uma miscelânea de ritmos afrodiaspóricos que vão do jazz ao funk, passando pelo reggae e pelo rock, sem se apegar a nenhuma dessas linguagens. À tentativa de estereotipação, Itamar respondeu com fina ironia, subvertendo e brincando com o ritmo que é símbolo da nação e da modernização do país.
Itamar em show do disco “Ataulfo Alves por Itamar Assumpção: pra sempre agora, de 1996 (Foto:Mônica Bento/Acervo MUI.TA)Leia aqui...https://outraspalavras.net/poeticas/itamar-assumpcao-e-os-negos-ditos-das-metropoles/?fbclid=IwAR1nPiR1AgKj7b81vYSvym15CUPajGfgm4DJMXSzO-kHZOpcNLEvDruPF-s



Nenhum comentário:

Postar um comentário